O treino de limiar representa um dos pilares fundamentais na preparação de corredores de todos os níveis.
Compreender e implementar corretamente este tipo de treino pode transformar significativamente seu desempenho, permitindo que você corra mais rápido por mais tempo com menor esforço percebido.
Conteúdo do texto
- 1 O Que é o Limiar de Lactato?
- 2 Por Que o Treinamento de Limiar é Tão Importante?
- 3 Quais São os Tipos de Treino de Limiar?
- 4 Métodos Práticos de Treinamento de Limiar
- 5 Como Determinar seu Ritmo de Limiar
- 6 Periodização do Treinamento de Limiar
- 7 Erros Comuns a Evitar
- 8 Adaptando o Treinamento de Limiar ao seu Perfil
- 9 Potencialize seu Desempenho com o Treinamento de Limiar
- 10 Referências
O Que é o Limiar de Lactato?
O limiar de lactato (também conhecido como limiar anaeróbio) representa o ponto durante o exercício em que a produção de lactato começa a superar a capacidade do corpo de removê-lo.

Em termos práticos, é a intensidade de exercício que você consegue manter por aproximadamente uma hora em esforço máximo¹.
Este ponto é crucial para corredores porque:
– Marca a transição entre o metabolismo predominantemente aeróbio e anaeróbio
– Determina a intensidade que pode ser sustentada em provas de média e longa distância
– É altamente treinável, podendo melhorar significativamente com o treinamento adequado
– Tem alta correlação com o desempenho em provas de 5k até maratona
Diferentemente do VO₂max, que tende a ter um componente genético significativo e limitações em sua melhoria, o limiar de lactato pode ser substancialmente aprimorado com treinamento específico, mesmo em atletas experientes².
Por Que o Treinamento de Limiar é Tão Importante?
O limiar de lactato é considerado por muitos especialistas como o preditor mais confiável de desempenho em corridas de resistência. Estudos demonstram que corredores com limiares mais altos (como percentual do VO₂max) conseguem manter ritmos mais rápidos por períodos prolongados³.
Benefícios do treinamento de limiar incluem:
- Melhora na economia de corrida: Você utiliza menos oxigênio para manter o mesmo ritmo
- Aumento na capacidade de remoção de lactato: Seu corpo se torna mais eficiente em processar e utilizar o lactato como combustível
- Adaptações musculares: Aumento na densidade mitocondrial e capilarização
- Melhora na resistência mental: Desenvolve a capacidade de sustentar esforço em zona desconfortável
- Transferência direta para o desempenho: Os ganhos obtidos são diretamente aplicáveis às situações de corrida
Quais São os Tipos de Treino de Limiar?
A Metodologia de Jack Daniels
Jack Daniels, um dos treinadores mais respeitados no mundo da corrida, divide o treinamento de limiar em duas categorias principais⁴:
1. Corridas de Tempo (Tempo Runs)
Intensidade: Ritmo de limiar (T-pace)
Duração: 20-30 minutos contínuos
Objetivo: Desenvolver a capacidade de sustentar o esforço no limiar por períodos prolongados
Exemplo: Aquecimento + 20 minutos no ritmo T + desaquecimento
2. Intervalos de Cruzeiro (Cruise Intervals)
Intensidade: Mesmo ritmo de limiar (T-pace)
Estrutura: Repetições de 3-15 minutos com recuperação curta (1 minuto ou menos)
Volume total: 20-40 minutos no ritmo T
Exemplo: Aquecimento + 5 x 5 minutos no ritmo T com 1 minuto de recuperação + desaquecimento
Daniels enfatiza que o ritmo de limiar corresponde aproximadamente ao ritmo que você conseguiria manter em uma prova de 1 hora (entre 10k e meia maratona para a maioria dos corredores).
Ele recomenda utilizar sua tabela VDOT para determinar com precisão o ritmo T ideal para cada corredor.
A Abordagem de Steve Magness
Steve Magness, autor de “The Science of Running” e treinador de elite, propõe uma visão mais nuançada do treinamento de limiar⁵:
1. Treinamento de Limiar Clássico
Similar à abordagem de Daniels, mas com ênfase na individualização baseada no perfil fisiológico do corredor.
2. Treinamento de Limiar Duplo (Double Threshold)
Conceito: Alternar entre intensidades ligeiramente acima e abaixo do limiar
Estrutura: Alternar segmentos no ritmo de limiar com segmentos 20-40 segundos/km mais lentos
Benefício: Melhora a capacidade de remoção de lactato durante esforços submáximos
Exemplo: 5 minutos no ritmo de limiar + 5 minutos 30 segundos/km mais lento, repetido 3-4 vezes
3. Treinamento de Limiar Progressivo
Estrutura: Começar abaixo do ritmo de limiar e progressivamente aumentar até ultrapassá-lo
Benefício: Desenvolve a capacidade de lidar com acúmulo gradual de lactato
Exemplo: 30 minutos de corrida começando 30 segundos/km abaixo do ritmo de limiar e terminando 10 segundos/km acima
Magness enfatiza a importância de adaptar o treinamento de limiar ao tipo de fibra muscular predominante do corredor (rápida vs. lenta) e ao perfil metabólico individual.

O Modelo Norueguês
Recentemente, o modelo norueguês de treinamento de limiar ganhou atenção mundial pelos resultados impressionantes de atletas como os irmãos Ingebrigtsen⁶:
1. Intervalos no Limiar (Threshold Intervals)
Intensidade: Ligeiramente abaixo do limiar (2-3 mmol/L de lactato)
Estrutura: Intervalos de 5-10 minutos com recuperação muito curta (30-60 segundos)
Volume total: 25-40 minutos de trabalho
Frequência: 1-2 vezes por semana
2. Limiar com Monitoramento de Lactato
Característica única: Uso frequente de medições de lactato durante o treino para manter a intensidade precisa
Objetivo: Maximizar o tempo na “zona ótima” de desenvolvimento do limiar
Benefício: Evita o treinamento excessivamente intenso que pode comprometer a recuperação
Métodos Práticos de Treinamento de Limiar
Baseado nas abordagens dos especialistas e em evidências científicas, aqui estão os métodos mais eficazes de treinamento de limiar para corredores:
1. Corrida Contínua no Limiar
Como fazer:
– Aquecimento de 10-15 minutos em ritmo fácil
– 20-30 minutos de corrida contínua no ritmo de limiar
– Desaquecimento de 5-10 minutos
Benefícios:
– Desenvolve a resistência mental para sustentar o esforço
– Simula as demandas fisiológicas de uma corrida de ritmo
– Ideal para corredores com predominância de fibras de contração lenta
Progressão:
– Iniciantes: Começar com 15 minutos e aumentar gradualmente
– Avançados: Estender até 40 minutos para maratonistas
2. Intervalos de Cruzeiro (Cruise Intervals)
Como fazer:
– Aquecimento de 10-15 minutos
– 3-6 repetições de 3-8 minutos no ritmo de limiar
– Recuperação ativa de 30-90 segundos (caminhada ou trote leve)
– Desaquecimento de 5-10 minutos
Benefícios:
– Permite acumular mais volume total no ritmo de limiar
– Menor estresse mental que a corrida contínua
– Adequado para corredores de todos os níveis
Exemplo de progressão:
– Semana 1: 4 x 4 minutos com 1 minuto de recuperação
– Semana 4: 5 x 5 minutos com 1 minuto de recuperação
– Semana 8: 4 x 8 minutos com 1 minuto de recuperação
3. Treinamento de Limiar Duplo (Double Threshold)
Como fazer:
– Aquecimento de 10-15 minutos
– 3-4 blocos de:
* 5 minutos no ritmo de limiar
* 5 minutos 20-30 segundos/km mais lento que o limiar
– Desaquecimento de 5-10 minutos
Benefícios:
– Melhora a capacidade de remoção de lactato
– Permite maior volume total de trabalho
– Particularmente eficaz para corredores com predominância de fibras de contração rápida
4. Corrida Progressiva no Limiar
Como fazer:
– Aquecimento de 10-15 minutos
– 20-30 minutos de corrida progressiva:
* Primeiros 10 minutos: 15-20 segundos/km mais lento que o ritmo de limiar
* Próximos 10 minutos: No ritmo de limiar
* Últimos 5-10 minutos: 5-10 segundos/km mais rápido que o ritmo de limiar
– Desaquecimento de 5-10 minutos
Benefícios:
– Simula as demandas de uma corrida real (início controlado, meio estável, final mais rápido)
– Desenvolve a capacidade de lidar com o acúmulo gradual de lactato
– Treina o corpo para remover lactato mesmo em intensidades crescentes
5. Fartlek Estruturado no Limiar
Como fazer:
– Aquecimento de 10-15 minutos
– 20-30 minutos alternando:
* 3-5 minutos no ritmo de limiar
* 1-2 minutos em ritmo moderado (30 segundos/km mais lento)
– Desaquecimento de 5-10 minutos
Benefícios:
– Adiciona variedade ao treinamento
– Pode ser feito em terrenos variados
– Menos monótono que outros métodos

Como Determinar seu Ritmo de Limiar
Existem várias maneiras de determinar seu ritmo de limiar:
1. Teste de 30 Minutos
– Após aquecimento adequado, corra o mais rápido possível por 30 minutos
– O ritmo médio dos últimos 20 minutos é uma boa aproximação do seu ritmo de limiar
– Ideal para corredores intermediários e avançados
2. Tabela VDOT de Jack Daniels
– Baseada em um resultado recente de corrida (5k, 10k, etc.)
– Consulte a tabela VDOT para encontrar seu ritmo T correspondente
– Método prático e acessível para todos os níveis
3. Fórmula Aproximada
– Para corredores recreativos: Ritmo de limiar ≈ Ritmo de prova de 10k + 10-15 segundos/km
– Para corredores avançados: Ritmo de limiar ≈ Ritmo de prova de 15-21k
4. Teste de Laboratório
– Medição direta dos níveis de lactato durante teste incremental
– Método mais preciso, mas requer equipamento especializado
– Recomendado para atletas de elite ou aqueles com acesso a laboratórios esportivos
Periodização do Treinamento de Limiar
Para maximizar os benefícios, o treinamento de limiar deve ser periodizado ao longo da temporada:
Fase de Base (Início da Temporada)
Frequência: 1 vez por semana
Formato recomendado: Intervalos de cruzeiro mais curtos (ex: 4-5 x 3-4 minutos)
Objetivo: Introduzir o estímulo de limiar sem grande estresse
Fase de Construção (Meio da Temporada)
Frequência: 1-2 vezes por semana
Formato recomendado: Combinação de corridas contínuas no limiar e intervalos de cruzeiro mais longos
Objetivo: Desenvolver a capacidade de sustentar o esforço no limiar
Fase Específica (Pré-Competitiva)
Frequência: 1-2 vezes por semana
Formato recomendado: Treinamento específico para a distância da prova-alvo
* Para 5-10k: Intervalos de cruzeiro mais intensos
* Para meia/maratona: Corridas contínuas mais longas no limiar
Objetivo: Simular as demandas específicas da competição
Fase de Competição
Frequência: 1 vez por semana (reduzida)
Formato recomendado: Sessões mais curtas para manutenção
Objetivo: Manter as adaptações sem comprometer a recuperação para as competições
Erros Comuns a Evitar
1. Treinar rápido demais: Muitos corredores realizam o treinamento de limiar em intensidade excessiva, transformando-o em treino anaeróbio
2. Volume insuficiente: Sessões muito curtas não proporcionam estímulo adequado
3. Frequência excessiva: Mais de 2 sessões por semana pode levar ao overtraining
4. Negligenciar a progressão: Aumentar volume ou intensidade muito rapidamente
5. Abordagem única para todos: Não considerar as diferenças individuais na resposta ao treinamento
Adaptando o Treinamento de Limiar ao seu Perfil
Para Corredores de Fibras Rápidas
– Preferir intervalos de cruzeiro em vez de corridas contínuas
– Utilizar o método de limiar duplo de Steve Magness
– Recuperações ligeiramente mais longas (60-90 segundos)
– Menor volume total, mas maior intensidade
Para Corredores de Fibras Lentas
– Preferir corridas contínuas no limiar
– Progressivamente estender a duração
– Considerar o modelo norueguês de intervalos longos com recuperação curta
– Maior volume total em intensidade controlada
Para Corredores de 5-10k
– Enfatizar intervalos de cruzeiro mais curtos e intensos
– Ocasionalmente treinar ligeiramente acima do limiar
– Combinar com treinamento de VO₂max
Para Maratonistas
– Priorizar corridas contínuas mais longas no limiar
– Utilizar o treinamento de limiar duplo para acumular volume
– Combinar com corridas longas no ritmo de maratona
Potencialize seu Desempenho com o Treinamento de Limiar
O treinamento de limiar representa uma das formas mais eficazes de melhorar o desempenho em corridas de média e longa distância. Ao incorporar sistematicamente estes métodos em sua rotina de treinos, você estará desenvolvendo uma das capacidades fisiológicas mais determinantes para o sucesso na corrida.
A chave está na consistência e na progressão gradual. Comece com volumes e intensidades adequados ao seu nível atual e aumente gradualmente conforme seu corpo se adapta. Monitore seus progressos através de testes periódicos e ajuste seu treinamento conforme necessário.
Lembre-se que o treinamento de limiar é apenas uma parte de um programa de treinamento equilibrado. Combine-o com corridas longas, treinos de velocidade e recuperação adequada para maximizar seu potencial como corredor.

Referências
¹ Bassett DR, Howley ET. “Limiting factors for maximum oxygen uptake and determinants of endurance performance”. Medicine & Science in Sports & Exercise. 2000;32(1):70-84.
² Joyner MJ, Coyle EF. “Endurance exercise performance: the physiology of champions”. Journal of Physiology. 2008;586(1):35-44.
³ Faude O, Kindermann W, Meyer T. “Lactate threshold concepts: how valid are they?”. Sports Medicine. 2009;39(6):469-490.
⁴ Daniels J. “Daniels’ Running Formula”. 3rd ed. Human Kinetics; 2013.
⁵ Magness S. “The Science of Running: How to find your limit and train to maximize your performance”. Origin Press; 2014.
⁶ Seiler S, Tønnessen E. “Intervals, thresholds, and long slow distance: the role of intensity and duration in endurance training”. Sportscience. 2009;13:32-53.
⁷ Midgley AW, McNaughton LR, Jones AM. “Training to enhance the physiological determinants of long-distance running performance”. Sports Medicine. 2007;37(10):857-880.
⁸ Billat VL, Sirvent P, Py G, Koralsztein JP, Mercier J. “The concept of maximal lactate steady state: a bridge between biochemistry, physiology and sport science”. Sports Medicine. 2003;33(6):407-426.
⁹ Esteve-Lanao J, Foster C, Seiler S, Lucia A. “Impact of training intensity distribution on performance in endurance athletes”. Journal of Strength and Conditioning Research. 2007;21(3):943-949.
¹⁰ Laursen PB. “Training for intense exercise performance: high-intensity or high-volume training?”. Scandinavian Journal of Medicine & Science in Sports. 2010;20(Suppl 2):1-10.
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